O Olho Distante e a Vaca Celestial

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Olho de Rá

Recentemente fui chamada por uma amiga para fazer uma Live sobre um festival kemético: O Estabelecimento da Vaca Celestial. Pois muito que bem, conforme fui reunindo material para essa conversa, fui percebendo que o buraco é mais em baixo então decidi juntar todo esse conteúdo em um texto complementar à live!

Primeiramente quero listar alguns textos que acho de extrema necessidade de se ler para complementar ainda mais este que estou escrevendo, são eles uma série de textos do blog Isiopolis explorando as variações desse mito e como ele se relaciona com Aset (parte 1, parte 2 e parte 3); um texto da Rev. Dra. Tamara Siuda, a Nisut da Ortodoxia Kemética refletindo sobre o significado dessa festividade chamado “And there were stars: How a time out turned into the nighttime sky“; dois artigos escritos por Edward Butler sobre o Livro da Vaca Celestial, um sobre a Raiva de Sekhmet e o outro uma Interpretação Teológica do mito.

Algumas coisas são necessárias para se entender esse festival, o primeiro é que ele faz parte de uma série de festividades chamada de Intu’es (“Ela é Trazida de Volta”), sendo o Estabelecimento da Vaca Celestial apenas um dos dias de uma celebração de quase 16 dias. A segunda coisa a se entender é um evento mitológico escrito em textos funerários chamado de Livro da Vaca Celestial.

De forma bastante resumida, Rá estava infeliz com a humanidade que estava começando a mostrar sinais de rebelião e isfet então Ele envia sua Filha Hethert para dar um susto nos humanos, porém a Deusa começa a se descontrolar e sua matança fica agradável para Ela, que se transforma na leoa Sekhmet. Então Rá se arrepende e junta vários sacerdotes que tingem barris de cerveja com colorante vermelho e jogam sobre todo o Egito para que a Deusa beba, depois que Ela adormece de tão bêbada, Ela é apaziguada e diversos festivais são prometidos para Hethert-Sekhmet. Depois de tudo isso Rá percebe que é perigoso que o poder Dele esteja tão perto de sua criação e decide se afastar, Ele então chama por Nut que se transforma em uma vaca e se eleva aos céus, se transformando no céu estrelado, onde passa a ser a nova casa de Rá.

Um detalhe muito importante para se entender sobre Kemet e este mito é que existiam variações de todas as narrativas mitológicas. Deuses diferentes, acontecimentos diferentes e resultados diferentes eram muito vistos, e quando se trata de um assunto como Olhos de Rá, é ainda mais complexo, já que esse é um título dado à uma infinidade de Deusas protetoras de Rá, sendo assim, cada região tinha a sua versão desse mito (recomendo que leia a parte 1 do texto de Isiopolis onde a autora explora as diversas variações desse mito) então o importante a se saber aqui é: Temos uma deusa raivosa que se afasta (normalmente para a Núbia), Ela é encontrada e apaziguada e então retorna para o Egito, recebendo festas e honras. Depois disso, Rá se eleva nos céus em cima de sua Filha na forma de uma vaca para poder assistir à Sua criação de longe.

Antes de explorar o culto e as celebrações, quero explicar a relação desse mito com o cosmos egípcios. Ele acontecia perto de Dezembro e ia até Janeiro no nosso calendário e nesse momento acontecia o Solstício de Inverno no Egito, apesar de os antigos Egípcios não reconhecerem o Inverno como uma das suas estações (eles tinham três: Inundação, Crescimento e Calor), eles percebiam que o sol se distanciava para o sul e que o calor diminuía, então isso foi entendido e explicado através das histórias de que a Filha raivosa de Rá havia se perdido ou fugido e precisava ser apaziguada e retornada e diversas celebrações foram desenvolvidas em cima desse acontecimento mitológico.

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Ela é trazida de volta
Tefnut é apaziguada por Djehuty no Templo de Dakka

Nessa celebração, também chamada de “Heb A’a Wer A’a Wer” (O Festival Muito Muito Grandioso), a Deusa do Olho Distante é normalmente tida como Tefnut, Sekhmet e Hethert (até mesmo num aspecto sincrético entre Elas), também celebrados, os Deuses reponsáveis pelo apaziguamento do Olho Feroz é Djehuty ou Shu como Anhur, Aquele Que Busca a Distante. Esses Deuses viajam até Bugem (literalmente, “O Lugar do Encontro”) com presentes e promessas para poder resgatar e pacificar a Filha de Rá, levando Ela de volta para casa. As celebrações desse acontecimento tinham diversos percursos, descendo o Nilo em procissão do retorno do calor da Deusa do Sol por todo o Egito.

Nebt-het como a serpente Olho de Rá com cabeça de leoa e cuspindo fogo

Esse percurso se iniciava em Bugem e paravam no templo Núbio de Dakka e Abu (chamado de Aswan hoje em dia) e chegavam na primeira parada fora da Núbia, o templo Per-Aset em Philae. Em Philae todas as Deusas eram tidas como Olhos Distantes e recebiam hinos e oferendas sobre a fúria Delas, cada uma com sua fúria e apaziguamento mitológico. Aset e Nebt-Het são tidas como furiosas chamas sobre os inimigos de Wesir, Tefnut (que apaga sua chama voando alto no céu e se tornando Sopdet) e Sekhmet surgem contra os inimigos de Rá e a serpente Apep, Mut como o Olho de Rá que viaja de lugar a lugar, e Hethert é invocada como a forma já apaziguada e pura de Sekhmet, recebendo presentes, música de Sistros e Menats junto de dançarinas.

A celebração era então passada cada vem mais para o norte, alcançando todas as cidades de Kemet e se tornando um Feriado Nacional. Então de Philae a Deusa ia até Biga (o local onde Wesir é encontrado morto) , e passa a fazer uma procissão de barco por novo dias até chegar em Dendera que era a última parada. Além desses lugares, também temos registros de paradas em Kom Ombo, Edfu, Nekheb, Esna e Medamud.

Quando a Deusa chegava em Dendera, era derramado sobre a estátua de Hethert 16 jarros com água da inundação do Nilo, formando um mini lago sagrado ao redor Dela, refrescando a chama do Olho de Rá.

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Estabelecimento da Grande Vaca-Leiteira-Hesat

Dito toda essa longa história, vamos passar para a Vaca Celestial. Nada melhor do que explicar o mito através dos escritos do próprio mito que são tão lindos:

“Nut se tornou uma vaca e a Majestade de Rá estáva em suas costas. Os homens estavam incrédulos quando O viram nas costas da vaca.
[…]
“Eu me coloquei sobra suas costas para ser elevado.” Disse Ele e Nut se tornou o céu.
[…]
Ela disse: “Faça de mim uma multidão!” E as estrelas vieram a existir.”

Nut em formato de vaca sendo segurada pelos Deuses Hehu e por Shu

Depois disso, Rá traz os quatro ventos da eternidade de Heh para segurar as pernas de Nut que tremem por causa da altura, Shu, irmão de Tefnut e Pai de Nut, se coloca no centro, segurando Nut sobre a Terra enquanto Ela faz uma moradia para Rá. E assim como a Deusa-Olho e o Deus-Buscador recebem variações em suas escrituras, a Vaca Celestial também recebia variações, sendo então Nut (a mais popular nos mitos), Hethert (a mais popular nas celebrações), Mehet-Weret, Nit ou Hesat (a Vaca-Leiteira, ou Vaca-Celestial, que dá nome ao Festival).

Nos textos dos calendários é ditos que “Não deverás comer uvas (variante: Leite sic) neste dia do Estabelecimento da Grande Hesat na presença da sua Majestade Rá. Beba vinho e coma mel neste dia!”. Hoje em dia a “Semne in Hesat-Weret” ou “Estabelecimento da Grande Vaca Celestial” (ou “Hesat, a Grande”) se tornou um dia de alegria, chamada entre os Remetju da Ortodoxia Kemética de Festival-das-Estrelas ou Moomas (uma brincadeira com o mugido da vaca e a palavra X-mas, já que a festa acontece perto do natal), no passado essa não era uma celebração de tanta felicidade, ao mesmo tempo que se comemorava o retorno do sol como a Deusa do Olho, também se entristecia pelo distanciamento de Rá da humanidade. Então para isso, outras duas festas aconteciam no mesmo dia para trazer um pouco de felicidade para o povo de Kemet.

A primeira era exclusiva de Edfu, chamada de “A Descida da Pomba”, que é um tanto misteriosa, mas teorizam ser uma referência ao retorno do Olho de Rá ou a descida literal de alguma divindade até sua estátua no Templo, e a “Festa das Oferendas de Ação de Graças aos Deuses”, onde as pessoas reuniam todo tipo de ofertas para os seus Deuses em agradecimento pela existência, a vida e as bênçãos.

Hethert na forma de uma vaca usando o colar Menat e andando nos papiros (Livro dos Mortos de Ani)

Um detalhe importante de se saber é a estrutura simbólica das vacas em Kemet. Elas são extremamente ligadas a formas primordiais de Olhos de Rá (normalmente tendo a forma de felinos, serpentes ou vacas). O som de colares Menat são muito similares ao som de vacas andando sobre campos de papiros, trazendo uma imagem sonora muito primordial da criação do universo. Além disso, como o céu é a forma de uma Vaca, dentro Dela existe todo o Duat e os campos de Wesir. Nut enquanto vaca é Aquela que devora o Sol no Oeste ao anoitecer e dá a luz à Ele pelo Leste na aurora.

Além disso, existiam vários títulos referentes à Deusas vacas. Um deles é a vaca Mehet-Weret (A Grande Inundação), que é uma forma de diversas Deusas, em especial Nit, como a vaca que surge no oceano primordial de Nut e eleva a Criança-Sol no meio de seus chifres pela primeira vez, causando o primeiro elevar do sol. Outra, Hesat (que dá nome ao festival) é a Vaca-Leiteira, que nutre o Sol em seu primeiro momento e que é muito ligado à Aset e ao touro Apis de Wesir. Outros títulos encontrados nas variações da palavra para Vaca encontradas nas versões do Livro da Vaca Celestial, onde é dito que Nut se transforma na vaca Ihet, Hemet ou Idet.

Falando em Nit, esta é uma das divindades que podemos relacionar com o mito do Olho e da Vaca. No dia anterior da abertura da procissão de Hethert como o Olho Distante, é celebrado um festival de Nit e Heka como deuses convidados no lago Isheru do templo de Mut, onde é acontecido o apaziguamento de Mut como o Olho Distante. Podemos entender que essa Festa é diretamente relacionada com as celebrações nacionais do Retorno do Olho, e aqui podemos entender Nit como a Deusa que vive todos os ciclos de Hethert, Aquela que é um Olho raivoso e que viaja, sendo trazida e apaziguada por Heka, Deus-personificação da Magia, no lago Isheru e se transformando depois na vaca Mehet-Weret e elevando o Deus para longe da humanidade. Em El Qal’a, alguns autores entendem Nit e Anuket como a forma Distante de Nebt-Het, podendo então relacionar Ela com a versão Vaca de Nebt-Het, enquanto Anuket sendo Ela como o Olho Distante. Enquanto em Komir, Nebt-Het é relacionada com Tefnut.

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Dia 29 do 1° mês de Peret, Festa da navegação de Bast”

Outra Deusa que recebe festas nessa época do ano é Bast, que já foi citada aqui. Numa Estela de Thutmosis III encontrada no templo de Mut em Karnak – mesmo templo que recebia a pacificação de Mut e Nit no lago Isheru. Nessa estela é dita que “No dia 29 do primeiro mês de Peret [é celebrada a] Festa da navegação de Bast”, também em outra Estela em Karnak, dessa vez de Thutmose IV é dito que nesse dia acontece a festa de “Djehuty que envia Bast e Sekhmet para Proteger as Duas Terras”. Bast surge em alguns casos dividindo a barca processional com Khonsu, Deus lunar e forma de Djehuty, sendo possivelmente o deus que busca e pacifica Ela.

Também no lago de Isheru acontecem procissões de Mut que é a dona do Lago, Wadjet, Shezemtet, Bast e Sekhmet com Djehuty, e Nit junto de Heka.

Quanto a Aset, recomendo que se leia os textos Isiopolis sobre a interpretação de como Aset se relaciona com o mito da Olho, entendo também a relação Dela com o mito de Wesir e com a proteção de Heru, como a Deusa Escorpião que é chamada em Edfu como “Aquela que o veneno é rápido”. No momento em que Ela foge com Heru, destruindo os inimigos do marido -especialmente que os festivais dos Mistérios de Wesir aconteceram um mês antes do Intu’es – e sendo levado de volta para o Egito por Heru, que pacifica a Mãe, que se transforma em Hesat-Sopdet para erguer o Sol e trazer a inundação. Durante este período Ela é regente de um dos dias como “Aquela que dá para aqueles que Ela ama”, podendo ser entendido como bênçãos, inundação ou vingança. Sobre Heru é também legal pensar que quase todos os Deuses que trazem o Olho podem ser sincretizados com Ele: Shu, Djehtuy, Anhur, Heka…

No final das contas, independente da Deusa celebrada, o Intu’es e Semne-in-Hesat-Weret eram celebrações múltiplas sobre a perda e o retorno do calor (muito apropriado também para o período de Solstício de Verão no hemisfério sul), um grande período de reflexão sobre se distanciar daquilo de ama, sobre fúria, apaziguamento e o reencontrar de Casa. Entender que os Deuses se distanciam da sua Criação é importante, em um aspecto social, comunitário ou pessoal. Este período marca momentos de distanciamentos muito misteriosos de Aset de mim, mas que seu Retorno trouxe muitas coisas marcantes e de extrema importância para todo o meu caminho Kemético.

Um feliz final de anos, e um ótimo período de celebrações para quem acompanha o blog.

Quero agradecer à Sha’ersenu pelo convite que inspirou esse texto, e à Hemet (Ankh Udja Seneb) e todas as pessoas da House of Netjer que possam ter contribuído nessas pesquisas. E deixo para vocês um hino de apaziguação de Hethert-Sekhmet de Philae.

Venerável, Heru Feminina,
Senhora da Bacia de Fogo,
Augusta e Grande no Céu e na Terra,
Senhora da Vida,
De Belo Rosto,
Grande em Amor em todas as Duas Terras,
Luminosa do Luminoso
Poderoso dos poderosos,
Rainha do Alto e Baixo Egito
Hethert, Venerável,
Senhora de Senmet, Poderosa Soberana
Aquela que brota de Kenset,
Quem atende Senmet na forma da Venerável Wepeset [Deusa da Chama],
E se eleva.
Chama, Cuja respiração ardente queima os inimigos
Feroz em Sekhmet, apaziguada em Bast,
Aquela que faz a terra prosperar com Seu papiro da Vida,
Aquela que coloca o amor ao lado da Enéada.

Fontes:
Abdel-Raziq, Dr. Abdalla. “Sacred Bark of Bastet”.
Bolton, Chelsea Luellon. “FLAMING LIONESS – Ancient Hymns for Egyptian Goddesses”.
Butler, Edward P. “The Book of the Celestial Cow. A Theological Interpretation”.
Butler, Edward P. “The Wrath of Sekhmet”.
Chassinat e Rochemonteix. “Le temple d’Edfou”.
Chassinat, Émile. “Temple de Dendera”.
Henadology – Sekhmet
Inconnu-Bocquillon, Danielle. “Le mythe de la déesse lointaine à Philae”.
Isiopolis – Is Isis a Wandering Goddess?
Isiopolis – Isis as a Wandering Goddess
Isiopolis – Wandering Isis
Leitz, Christian, ed. “Lexicon der Aegyptischen Goetter und Goetterbezeichnungen (Volumes 1-8)”.
Lévai, Jessica. “Aspects of the Goddess Nephthys, especially during the Graeco-Roman Period in Egypt”.
Richter, Barbara A. “On the Heels of the Wonderinf Goddess: The Myth and the Festival at the Temples of the Wadi el-Hallel and Dendera”.
Roeder, Günther. “Der Tempel von Dakke (Volumes 1-3)”.
Siuda, Tamara. “The Ancient Egyptian Daybook”.

2 comentários em “O Olho Distante e a Vaca Celestial

  1. Muito obrigada pelo post.
    É a primeira vez que entro no site e já amei e vou seguir o conteúdo! Fico grata também por ter postado as referências, não é muito fácil achar esse tipo de conteúdo produzido no Brasil.

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    1. Fico contente que tenha gostado, meu intuito é justamente trazer conteúdo bom para o português, justamente pela falta de material que temos ❤

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